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FUNCIONÁRIOS DE NINGUÉM

          “Filho de peixe, peixinho é”, dizem. Funcionário de ninguém, ninguém é? Essa é a história de funcionários que cuidam de pessoas esquecidas e, como eles, acabam ignorados.

          Sueli Marques, 69 anos, telefonista, é a funcionária mais antiga do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Trabalha na unidade há 35 anos, desde sua fundação. “Tenho tempo de me aposentar, mas gosto de trabalhar aqui. Estou acostumada”, diz ela. Nos corredores do Hospital de Custódia o que se ouve é que Sueli é “a cara do HCTP”. E é. Quem olha para ela vê a unidade. Sueli é uma mulher de estatura mediana que chama a atenção pelas suas feições bem marcadas por maquiagem de cores vivas. Trabalha numa sala pequena que é o oposto de si. A sala é simples, de cores claras, com duas mesas, três cadeiras e um banheiro.

  • Chama ela pra mim que tem uma pessoa no telefone, logo. - Pedia ela.

  • Já vou, é a menina da outra sala, né?

  • É.

  • Olhe moça, foram procurar ela. Quer ligar daqui a dez minutos? Não? Vai esperar?

          Esse é o retrato de Sueli. Trabalha sozinha, mas tem sempre companhia: a das pessoas que ligam e a das pessoas que recebem ligação. É de poucas palavras, respostas diretas. Depois de 35 anos no HCTP, não se vê em outro lugar.

          Ao contrário de Sueli, Renato Azevedo, um jovem educador físico, é funcionário do HCTP há pouco tempo, cerca de 2 anos. É um rapaz novo cujos modos contrastam com sua aparência. Calmo e sorridente, ele distribui pacientemente leite aos internos antes de começar mais uma aula com eles. “Foi um impacto grande quando vim pra cá. Eu percebi que tenho tudo e passei a valorizar mais as coisas depois que comecei a trabalhar aqui”, comenta ele.

          Renato trabalha também em academias e destaca as principais diferenças da forma de lidar com os internos do HCTP: “Tenho que detalhar tudo e demonstrar, mostrar a eles como é para fazer”. A forma usada por ele para atrair os pacientes para a atividade física é usá-la como forma de divertimento e distração. Outros estão com Renato por indicações médicas, a fim de controlar doenças como diabetes e hipertensão. Mas para o educador físico, a principal função das atividades promovidas por ele é de terapia. Esportes como suporte para o controle dos transtornos psicológicos.

          “Eu tinha medo quando comecei a trabalhar aqui. Ficava perguntando quem tinha feito o que. No primeiro mês, pensei em sair. Mas eu nunca desisto de alguma coisa sem antes dar chance. Decidi parar de perguntar e olhar pra eles de outro jeito. Hoje sou próximo de alguns. Outros não permitem tanta aproximação ou só estão juntos de tempos em tempos, mas eu entendo e respeito”, lembra Renato.

          Renato organiza também campeonatos de futebol dentro do Hospital de Custódia. “Gol é universal. Com ou sem transtorno mental, gol é gol. Eles comemoram e sabem diferenciar onde é cada barra e qual o espaço de cada time”, conta. No final das competições todos ganham prêmios, que normalmente são materiais de higiene pessoal. Os primeiros lugares ganham kits mais incrementados, mas Renato esclarece que é importante que todos recebam para que não surjam rixas posteriores. As regras dos campeonatos são adaptadas e algumas até deixadas de lado a fim de facilitar o entendimento.

          Numa sala pequena, apertada e repleta de mesas, cadeiras e papéis, trabalham Tamires Queiroz, fisioterapeuta, e Otília Frazão, psicóloga. As duas mulheres de aspecto simpático e de movimentos e fala rápidos são responsáveis por um dos momentos mais complicados e delicados na vida dos internos: a desinstitucionalização. São duas lutadoras sem luvas. Passam boa parte do seu tempo tentando entrar em contato com as famílias daqueles que receberam alvará de soltura.

          “Um dos momentos mais emocionantes que eu vivi foi quando dei a um pai a notícia de que seu filho estava aqui. Ele era idoso e achava que o filho tinha morrido. Foi um momento lindo quando o pai veio buscá-lo”, comenta Otília Frazão. Mas nem todas as histórias que as duas mulheres ouvem são de alegrias. “É muito difícil quando o paciente recebe o alvará, mas os vínculos com a família estão rompidos ou há ameaça à vida deles, porque muitos crimes são cometidos contra os próprios parentes”, completa Otília. É nesse momento que o trabalho mais difícil começa: encontrar vagas em residências terapêuticas.

          As duas mulheres compartilham da agonia dos pacientes de não ter para onde ir. Tudo isso sem perder a esperança. É nelas que os pacientes prestes a sair encontram o apoio necessário para se reintegrar à vida em sociedade, o que não é fácil.

          Maria do Carmo Floriano, professora e secretária da Escola Médico Ruy do Rego Barros, que funciona dentro do HCTP, conta que já encontrou ex-alunos como pedintes nas ruas do Recife: “infelizmente eu não tinha nenhum centavo na minha bolsa naquele dia e não pude ajudá-lo. Fiquei com o coração partido”.

          A funcionária, que já está há 23 anos trabalhando no Hospital de Custódia, teve uma experiência diferente ao chegar no HCTP pela primeira vez. Acompanhada do procurador Lauro Bento, encontrou um paciente com um machado no meio das folhas. Maria do Carmo recuou, teve medo. Lauro disse a ela que entrasse. E, conta ela, foi então que o medo passou. “Agora esses alunos são como membros da minha família”, relata.

          Maria do Carmo enfrentou algumas dificuldades nesses 23 anos em que trabalhou no HCTP, uma delas foi a luta contra a leucemia em seu filho de 11 anos. “Foi difícil, mas isso aqui foi minha força. Um dia cheguei e um dos meus alunos me olhou e disse que meu filho ia ficar bem”, conta ela.

          Conquistando progressos no ensino, Maria do Carmo se orgulha de contar que ensinou muitos alunos a ler e escrever e que conseguiu fazer, inclusive, com que lessem a Bíblia. A professora já encontrou um aluno fazendo compras numa loja e relata o sentimento: “foi maravilhoso ver que ele estava controlado e vivendo normalmente”.

          Maria do Carmo é uma mulher que gosta de falar. É possível ficar ouvindo suas histórias durante horas e horas. E dá pra perceber que o interesse e a paixão dela são seus alunos. Ela conta o que viveu com eles, ri, brinca, mas deixa claro que sabe que o trabalho que faz no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Pernambuco não é devidamente reconhecido pela sociedade.

          Roberto Pontes, psicólogo da escola, concorda com Maria do Carmo. “Essas pessoas lidam simultaneamente com dois tipos de discriminação. São apenados e portadores de transtorno mental. Sofrem duas vezes. Isso aqui é uma prisão de segurança máxima”, comenta ele. E reconhece que os funcionários acabam sendo, muitas vezes, quase tão invisíveis quanto os pacientes. “Eu já trabalhava em clínicas psiquiátricas antes de vir pra cá, a diferença é que ninguém presta atenção nesse lugar”, lamenta.

          Como muitos dos internos estão matriculados na escola, são funcionários como Roberto Pontes e Maria do Carmo Floriano os responsáveis por suportar, junto com os pacientes, os dias de visita em que não recebem ninguém. Ficam mal humorados, estressados e os sintomas de ansiedade se agravam.

          Na portaria, os responsáveis pela segurança são os designados para controlar a ansiedade e a agonia da outra parte: as famílias que vêm para as visitas. Por trás das barras de ferro que dividem o lado de fora e o de dentro do HCTP, os policiais se confundem numa massa de roupas pretas indo e vindo. Fazem cadastros, anotam nomes, conduzem as pessoas de um lado para o outro, prestam atenção em quem sai, perguntam o motivo da visita daqueles que não são familiares e amigos. Todos de revólver na cintura prontos para tudo. “Está armado? Está com celular?”, perguntam aos que passam pelos portões. Têm direito a uma televisão no “hall de entrada” para se distrair. Não têm nome, endereço nem idade. Todos passam por eles e automaticamente esquecem que os viram.

          A diretora Norma Cassimiro, responsável pelo HCTP - PE há cinco meses, concorda que o quantitativo de pessoas para a segurança é pequeno, mas admite que o Hospital de Custódia é privilegiado nesse quesito em relação às outras unidades prisionais.

          Norma trabalha numa sala espaçosa no final de um corredor. Em meio a uma mesa cheia de papéis, solicitações e documentos, ela encontra tempo para ler as cartas dos internos. É uma mulher cheia de energia e que, apesar disso, demonstra tranquilidade e tem uma fala calma e bem explicada.

          Preocupada com os rumos do HCTP, Norma tem procurado conduzir sua equipe numa lógica de humanização e enxerga o Hospital de Custódia como um abrigo temporário para alguns. Os pacientes não podem ficar ali a vida inteira. Norma se preocupa com aqueles que não têm para onde ir e com aqueles que não querem sair, que acham que o HCTP é sua casa.

          “A lógica aqui é de saída. Acredito na extinção manicomial, mas ainda temos que trabalhar muito. Não há vagas para todos em residência terapêutica e não podemos simplesmente soltar todo mundo na rua”, comenta a diretora. Tentando proporcionar bem-estar aos pacientes, ela abriu a agenda de visitas para que as famílias dos interiores pudessem visitar seus parentes em qualquer dia.

          Isso fala sobre sua administração, mas fala ainda mais sobre quem é Norma Cassimiro. “Eu nunca pretendi ser diretora, não sei direito como vim parar aqui, mas faço o melhor que posso para esses internos”, comenta.

          Junto com todos os outros funcionários, Norma é uma das invisíveis. Uma das funcionárias de ninguém. É tudo isso numa posição privilegiada, mas é. Todas essas pessoas trabalham todos os dias num local que muitos não sabem que existe, para pessoas com quem ninguém se importa.

          Erving Goffman, em Manicômios, prisões e conventos tem a definição perfeita para o que acontece nesse tipo de instituição: “é organizada para proteger a comunidade contra perigos intencionais, e o bem-estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato”. Isso é válido sobretudo para os internos, mas, mesmo que de maneira mais tênue, também o é para os profissionais.

© 2023 por Henry Calmon. Orgulhosamente criado com Wix.com

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