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CRÔNICAS DE UM TCC ANUNCIADO

Agosto, 2017

          Os pisos de madeira, os bancos de cimento coloridos e os lustres dão à Secretaria de Ressocialização de Pernambuco (Seres) um ar de casarão antigo. Além disso, cá entre nós, quem fica tranquilo em ter que lidar com órgãos oficiais? Foi quase um mês de “papel vai, papel vem”, quase um mês de assinaturas, comprovantes, ligações, recados. Quase um mês até encontrar Alga, funcionária da Seres:
- O que seu trabalho vai acrescentar para as ppl do HCTP?
- Ppl?
- Sim, pessoa privada de liberdade.
Embalada pelo nervosismo que me fez vestir quatro roupas antes de ir para a Seres a fim de parecer suficientemente séria e confiável, consegui responder:
- Eu quero que as pessoas saibam mais sobre o Hospital de Custódia e sobre as pessoas que são internas lá. Falta de conhecimento cria párias na sociedade e eu quero que o HCTP tenha mais visibilidade.
          Quem nunca ouviu um “eu ligo para dar a resposta” que atire a primeira pedra sobre a ansiedade de uma estudante. Quem não teve quase um mês de papelada e a sensação de que o TCC não ia sair que mantenha a sua calma e paciência. Dois dias depois, a ligação. Era quinta-feira. Segunda seria o dia de finalmente conhecer o HCTP. Não esquecer a identidade. Não pode celular, não pode câmera, não pode gravador. Os famosos bloquinho e caneta do jornalismo de Spotlight vieram com força. Jesus Cristo, será que eu daria conta de anotar tudo?

Setembro, 2017

          No caminho até Itamaracá teve dor de barriga, suor, tremedeira. Teve Polícia Federal parando carros para prolongar ainda mais a ansiedade tão íntima de todos os estudantes. Teve ponte com só uma faixa funcionando e um engarrafamento do qual os congestionamentos de São Paulo teriam inveja. Teve mais ainda especulações: como será lá? Será que eles usam roupa listrada? E se não me deixarem entrar? Pior... e se não me deixarem sair?
          Como criança pronta para assustar o próximo adulto que entrar, surge a placa amarela de letras pretas no meio de muito mato indicando o HCTP. Depois de 800 metros de estrada de areia e muita respiração, a parede branca enorme com carros pretos na frente aparece. O nome HCTP em letras azuis garrafais parece que caíram bem na minha cabeça. Com o carro estacionado embaixo de uma das árvores que rodeiam o local, é hora de recolher o necessário. Identidade para entrar. Bloquinho. Caneta e, para caso o refil completamente cheio de tinta acabe, lápis. E por fim muita, muita, muita mente aberta.
          Cruzar as grades grossas e pretas foi sentir a realidade dando duas tapas na minha cara, o TCC dizendo que era real e o fim do curso estralando dois dedos na minha frente para lembrar que estava acontecendo. Ufa.
- Bom dia. Eu vim para falar com a diretora. Ela está me esperando.
- Identidade, por favor. Estão com celular ou armados?
- Não.
Recado vai, recado vem, meu pai e eu podemos entrar. Minha mãe espera do lado de fora lendo a Bíblia e pedindo a Deus por mim. Se praga de mãe pega, oração também. Mais um portão de grades grossas e pretas e o TCC oficialmente começou.

          Norma Cassimiro, a diretora do HCTP, trabalho no final de um imenso corredor e me recebeu na sua sala, decorada apenas por uma mesa, um arquivo e cofre com uma bíblia e algum dos santos católicos que o nervosismo me impediu de perguntar e de identificar. A mesa cheia de papéis e o aviso da secretária de que Norma teria uma reunião me fez pensar que minha primeira visita ao HCTP seria só para ter uma conversa de dez minutos com a diretora.

          Passaram dez minutos, quinze, vinte, meia hora… A secretária continuava preocupada com a tal reunião da diretora. Mas Norma continuava conversando comigo e nem quando fiz teste ergométrico meus batimentos cardíacos variaram tanto. Fim do primeiro dia de visita e a diretora me convidou para voltar na quarta e ver como era um dia de visita no Hospital de Custódia. Na minha cabeça, a cena era a de um cortejo real tocando suas trombetas. Eu iria voltar!

          A quarta-feira chegou parecendo que já tinha se passado uma semana desde a segunda. Mas foram dois dias. Sem dormir, sem comer, sem nada. A segunda visita ao HCTP foi uma apresentação de todo o espaço… Escola, funcionários, horta… Foram tantas anotações que a dor nas mãos me fizeram pensar que eu tinha escrito um livro a próprio punho. Para uma desavisada como eu não era possível identificar quem era interno e quem estava só visitando. Foi quando minha ficha caiu para o fato de que eu não estava vivendo o Criminal Minds da vida real. Aquilo não era uma série. Era a vida real e meu estigma tinha me feito achar que eu encontraria o caos. 

          Quando chegou o dia de escrever os textos, o esquema foi de “escreve parágrafo - apaga parágrafo”, “procura sinônimo - troca palavra”. Só não foi mais difícil do que escrever os pedidos de namoro da 3ª série com as opções sim e não.

 

Novembro, 2017

 

          Mais três visitas ao HCTP e eu pude ver muita gente indo e vindo fazendo seus trabalhos, conversando, circulando. Internos e funcionários se confundindo. Cada um ocupado nas suas atividades. E eu ali de observadora, tentando entender o Big Bang. Tentando entender toda a complexidade de um organismo vivo.  O TCC finalmente terminou. A obra na ponte que leva até Itamaracá ainda não teve a mesma sorte.

© 2023 por Henry Calmon. Orgulhosamente criado com Wix.com

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