QUESTÕES JURÍDICAS

Entrevista com a professora de direito Érica Babini, da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). O que as leis dizem sobre um Hospital de Custódia, o que acontece no julgamento de uma pessoa com transtorno mental e muitas outras questões jurídicas, incluindo a nomenclatura ultrapassada utilizada pela constituição, são esclarecidas pela professora.
Como é o julgamento de uma pessoa que tem transtorno mental?
Há um incidente processual que, por meio de perícia psiquiátrica, fará a averiguação da capacidade de compreensão e autodeterminação do indivíduo com o transtorno mental no momento em que realizou a conduta considerada ilícita.
Qual a diferença de um julgamento comum?
A diferença é que, se for verificado que havia um transtorno que, no momento da conduta, foi capaz de retirar inteiramente a capacidade de compreensão e autodeterminação, ele será absolvido. No entanto, essa absolvição é imprópria uma vez que remanesce uma consequência penal que consiste na aplicação de medida de segurança. A razão de ser dessa consequência deve-se ao fato de o legislador considerar esse indivíduo dotado de periculosidade social e, exatamente por isso, estar em liberdade representa um perigo à sociedade. Outrossim, é importante ressaltar que o conteúdo referido data de 1984, ocasião da última reforma do Código Penal, e que não acompanhou os movimentos de mudança social que levaram à construção de paradigmas diversos do confinamento para os casos de transtorno mental. Isto é, o Código Penal não acompanhou os movimentos da Reforma Psiquiátrica e da luta antimanicomial, baseados em processos de desinstitucionalização, tendo, ainda, nomenclaturas estigmatizantes e tratamento de restrição da convivência coletiva. No entanto, importante deixar claro que as medidas de segurança são sanções penais destinadas aos autores de um injusto penal punível, embora não culpável em razão da inimputabilidade. Isto é, para a imputação da medida de segurança é indispensável do concurso simultâneo de todos os requisitos do crime, com exceção da imputabilidade do autor que é elemento da culpabilidade.
Existe algum tratamento especial ou diferenciado para essas pessoas durante o julgamento?
Não há nenhum tratamento especializado, exceto do fato de poder suscitar o incidente processual para a verificação do desenvolvimento mental.
Quais as leis que tratam do julgamento de alguém com transtorno mental?
Do ponto de vista penal, o Código penal e o código de Processo Penal.
Quais as leis que tratam sobre o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP)?
Não há legislação penal específica, mas lei que regulamenta, genericamente, o cumprimento da medida de segurança - Lei de Execução Penal - LEP*. Como se trata de questões reguladas pela competência estadual, os estados-membro podem legislar sobre o funcionamento e mais detalhes.
O que as leis dizem sobre um HCTP?
A LEP apenas trata da execução da medida de segurança - prazos para realização do exame de verificação de cessão de periculosidade, prazo de internação. A legislação estadual trabalhará detalhes do funcionamento referente à rotina da unidade.
No Brasil não há prisão perpétua, mas alguns internos chegam a passar mais de 30 anos dentro do HCTP. Sendo assim, o interno pode passar a vida inteira num Hospital de Custódia caso o exame de cessação de periculosidade constate que o transtorno não regrediu?
O Código Penal estabelece que o prazo de medida de segurança é por tempo indeterminado, exatamente porque se baseia na perigosidade do indivíduo. No entanto, a expressão “tempo indeterminado” levaria, de maneira indireta, à prisão perpétua proibida no Brasil. Assim, devido a essa ambiguidade, a jurisprudência trabalha no sentido de estabelecer um prazo máximo de permanência no HCTP, definindo, ora, o prazo máximo de prisão permitido no país, no caso, 30 anos, ora o prazo de prescrição da conduta criminal praticada. Portanto, devido a isso, é que não se passa mais “a vida inteira” na unidade, ainda que não tenha positivo o exame de cessão da periculosidade.
Caso o interno receba o alvará de soltura e seja rejeitado pela família e não encontre vaga em Residência Terapêutica, ele pode
continuar aos cuidados do HCTP? Ou tem que sair mesmo sem ter para onde ir?
Não. Em tese o HCTP tem que articular-se com a rede da saúde e da assistência social nos municípios e a rede do estado para viabilizar, de todo modo, a saída do HCTP, caso a família o rejeite. No entanto, esse processo é longo e, por vezes, pode acontecer de o indivíduo, já como alvará de soltura, aguardar no HCTP.
Os internos de um HCTP não têm fatores redutores de pena, como bom comportamento, estudos etc. Por quê?
Não tem porque o pressuposto filosófico da periculosidade indica que o transtorno mental, até então entendido como loucura, não comporta fatores de redução da punição. Além disso, as causas de redução estão vinculadas com a prevenção especial, ou mais conhecido como ressocialização, que é a função da pena. Assim, do ponto de vista teórico, considera-se que o preso vai, paulatinamente, adaptando-se à vida coletiva, na medida que realiza as atividades; o que não é o caso da medida de segurança, que não tem como função ressocializar, mas conter a perigosidade do louco - na expressão estigmatizante do Código Penal.
Por que um Hospital de Custódia pode abrigar homens e mulheres e as unidades prisionais comuns têm prédios separados para isso?
Como o fundamento da medida de segurança é a loucura, novamente utilizando a expressão do Código penal, a questão de gênero é absolutamente desprezada.
*LEI DE EXECUÇÃO PENAL
CAPÍTULO VI
Do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico
Art. 99. O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico destina-se aos inimputáveis e semi-imputáveis referidos no artigo 26 e seu parágrafo único do Código Penal.
Parágrafo único. Aplica-se ao hospital, no que couber, o disposto no parágrafo único, do artigo 88, desta Lei.
Art. 100. O exame psiquiátrico e os demais exames necessários ao tratamento são obrigatórios para todos os internados.
Art. 101. O tratamento ambulatorial, previsto no artigo 97, segunda parte, do Código Penal, será realizado no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico ou em outro local com dependência médica adequada.
Código Penal
TÍTULO III
DA IMPUTABILIDADE PENAL
Inimputáveis
Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Redução de pena
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)